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ARTES E CRIMES DIGITAIS

Se no século XIX a fotografia veio substituir a arte como uma representação mais ou menos fiel da realidade, levando os artistas a se refugiarem no universo das abstrações e do surrealismo, no século XX o estatuto da imagem fotográfica enquanto representação mais ou menos fiel da realidade foi por sua vez sabotado pela total transgressão das normas éticas das ditaduras totalitárias.

Na URSS de Stalin as autoridades que caíam em desgraça eram apagadas das fotografias publicadas, em fotomontagens sinistras. As cópias retocadas escreviam uma nova História, na qual aquelas pessoas transformavam-se em não-pessoas. A nulificação estendia-se para os jornais, as revistas, os livros, onde os nomes dos caídos eram suprimidos e nunca mais mencionados, até o esquecimento completo de suas existências.

Na Alemanha de Hitler, os cineastas especializaram-se no falso documentário, mesclando realidade e propaganda, criando uma realidade imaginária, distorcida pela doutrina, em filmes como O eterno judeu ou Hitler doa uma cidade aos judeus. A realidade era ainda remodelada na produção massiva dos cinejornais, que transmitiam a visão nazista dos fatos. Durante a guerra, nenhuma edição do semanário Die Deutsche Wochenschau era exibida sem passar pelo crivo pessoal de Goebbels e do próprio Führer.

A propaganda manipulava o público com representações falseadas da realidade, a serem vistas como suas mais fiéis representações, com o objetivo de incutir no público uma ideia distorcida dos fatos, uma deformação do real através de sua própria representação.

Os artistas de vanguarda, ao contrário, usavam a fotomontagem (que remonta à Era Vitoriana, em estampas bizarras, precursoras do surrealismo, ou em falsificações poéticas como a série das fadas de Cottingley, que chegou a ludibriar Conan Doyle), para criar um mundo alucinante, com sentido crítico e satírico, próximo dos sonhos e dos pesadelos, como nas obras de John Heartfield, Dora Maar, Grete Stein ou J. K. Potter.

No século XXI, a sabotagem do estatuto de realidade da imagem atingiu a perfeição com a tecnologia digital, não sendo mais possível saber se uma imagem representa uma realidade ou foi manipulada para parecer uma representação da realidade. A manipulação tornou-se uma prática popular, generalizada com a difusão massiva de programas como o Photoshop.

Os artistas da fotografia passaram a criar realidades imaginárias fundindo o mundo real com sua própria imaginação. A fotografia surrealista atingiu um novo patamar de sofisticação estética e perfeição técnica nas obras de um Erik Johansson, de um Thomas Barbèy, de uma Ysabel LeMay, de um Simen Johan.

A imagem fotográfica é agora algo entre o real e o imaginário, um híbrido para o qual olhamos (ou deveríamos olhar) com suspeita e desconfiança. A admiração que uma fotografia perfeita despertava deve hoje ser comedida, sem o entusiasmo natural experimentado diante da representação fiel de uma realidade existente. Não há mais representações seguras, tudo pode ser fraudado à perfeição.

O que diria Pasolini da revolução da imagem digital? Ele teria  muito a dizer da nova arte que floresce na sociedade de consumo e torna a própria realidade consumível, ao ser banalizada, e colocada entre parêntesis, sob uma eterna suspeita, através da sua desmaterialização, sem esquecer a colorização digital, que atualiza todo o passado para fins de diversão e de entretenimento.

No contexto dessa revolução epistemológica, o revisionismo histórico parece-nos uma ideologia que pode ter nascido da sabotagem sistemática do estatuto de realidade da imagem. Fruto de seu tempo fluido, ele cria uma realidade paralela, um mundo paralelo, um Brasil Paralelo, nos quais os traumas históricos são revistos e atenuados, colorizados, de modo a favorecer os carrascos: a Inquisição não matou ninguém, a Escravidão não foi tão ruim, o Holocausto nunca existiu, o Regime Militar foi um período maravilhoso, etc.

Pasolini não escapou de ser falseado pela nova arte. A fotógrafa Tiziana Fato criou uma imagem em que o escritor e cineasta passeia à noite por Bali, numa cidade esvaziada de gente e de vida, na qual o poeta parece vaguear como um fantasma solitário:

030. FOTOMONTAGEM. Pasolini a Bari. Montagem de Tiziana Fato.

Trata-se de uma fotomontagem digital. Na verdade, este Pasolini estava passeando por Nova York, em 1966, em plena Broadway fervilhante de gente e de vida, extasiado diante de tantas novidades, entusiasmado com uma América que lhe parecia encarnar o momento da Revolução, na foto original, de autoria de Duilio Pallottelli:

030. FOTOMONTAGEM. PASOLINI NA AMÉRICA - NY, 1966. Foto de Duilio Pallottelli (2)

Qual o sentido dessas manipulações artísticas da imagem? Criar uma representação semi-inédita de uma realidade desejada, que nunca existiu? Ter o prazer dúbio de confundir o presente com o passado? Destruir o que resta da memória dos fatos históricos? Demonstrar o próprio virtuosismo na falsificação da representação do real? Sem dúvida Pasolini teria muito o que dizer sobre a nova era da imagem digital e seu papel perturbador de consumo da própria realidade.

 

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