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O RAPAZ MOTOR

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Il ragazzo motore (O rapaz motor, Itália, 1967, 12’, p&b, doc). Direção: Paola Faloja. Roteiro: Paola Faloja, a partir de uma história contada por Pier Paolo Pasolini. Trilha: Alberico Vitalini. Fotografia: Giancarlo Lari. Edição: Mario Masini. Produção: Paola Faloja, Aldo Raparelli / Corona Cinematografica. Com Pier Paolo Pasolini (narração).

O filme parte de “uma história acontecida a Pier Paolo Pasolini, contada por ele mesmo”. Enquanto uma estranha engrenagem se move lentamente ao som de uma música de filme de ficção científica, a voz de Pasolini conta que, passeando por uma estrada que não sabe mais qual nem a que distância de Roma – o que ele considera significativo – encontrou um jovem que lhe pediu carona.

Pasolini parou o carro. O caronista era um rapaz com seus dezoito anos, de cujo rosto Pasolini não se recorda, e que se pôs a falar de coisas sobre as quais ele também não se recorda, enquanto se dirigiam a uma meta comum, também já esquecida – esses seus lapsos, Pasolini observa, são igualmente significativos.

As não-lembranças têm uma razão de ser. E ele não se recorda nem do rosto do rapaz, nem de suas palavras – pronunciadas com uma expressão ausente -, nem de sua voz, nem mesmo de sua presença física.

Para romper um silêncio embaraçoso, Pasolini diz que começou a fazer algumas perguntas ao jovem: sobre os seus gostos, sobre o que gostaria de fazer na vida, se estudava, se não estudava. Ele disse que não, que nada lhe interessava.

“Você não se interessa pelos estudos que está fazendo?”. “Não.”. “Não se interessa pelos esportes?”. “Não.” “Interessa-se ao menos por alguma garota?”. “Não.” “Mas… afinal, o que o interessa?”. Depois de um momento o rapaz respondeu: “Os motores.”. O Teremim da música de filme de ficção científica volta a soar.

Agora o filme deixa o cenário da estranha engrenagem, seguindo como um documentário sobre os jovens italianos obcecados por motocicletas, lambretas, oficinas mecânicas, competições de veículos e motores envenenados.

Diante de um bar do bairro os amigos encontram-se para jogar fliperama e fazer corridas clandestinas com suas máquinas. Eles próprios modificaram os motores. O vitorioso ganhará a bolada das apostas. Mas no final da competição, dois rapazes se chocam e caem de suas motos. Um deles bate a cabeça na calçada, agoniza e morre.

O curto documentário poético de Paola Faloja revela, com a cumplicidade de Pasolini, o universo barulhento e masculino dos apaixonados por motores, sua vida agitada, suja de graxa, desperdiçada em corridas e que frequentemente termina tragicamente, mas como uma tragédia sem sentido.

Os jovens que surgem na Itália de 1960 parecem a um intelectual humanista como Pasolini verdadeiros E.T.s (o que é sugerido pelo uso do Teremim na trilha sonora). O poeta nada pode ter em comum com o rapaz motor, pelo que recusa recordar sua existência ininteligível. Ele sofre essa presença como a revelação amarga da mutação antropológica dos jovens na sociedade de consumo.

[http://cinestore.cinetecadibologna.it/video/dettaglio/19008]

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40 ANOS SEM PASOLINI

Pasolini em Roma, 1967. Foto de Franco Vitale, Reporters Associati & Archivi Mondadori Portfolio.

Pasolini em Roma, 1967. Foto de Franco Vitale, Reporters Associati & Archivi Mondadori Portfolio.

Há 40 anos Pasolini era assassinado no sinistro ambiente suburbano e de desolada pobreza do Idroscalo de Óstia. Essa praia suja lembra os cenários de seus primeiros filmes, onde subproletários da periferia de Roma morriam vitimados pelas circunstâncias. O trágico fim de Pasolini, como o de um de seus personagens trágicos, transformou instantaneamente sua legenda negra numa legenda dourada, dando razão às suas profecias, realidade às suas “paranoias”.

Vivo, Pasolini era abominado, censurado, desprezado, considerado como um porco, um degenerado, um pervertido. Morto, passou a ser cultuado, celebrado e restaurado, visto como um santo, um gênio, um mito. Odiado pela esquerda e pela direita, hoje Pasolini é recuperado à direita e à esquerda: seu nome ainda dá algum lucro aos conglomerados das mídias, e suas ideias continuam a agredir o senso comum, interessando tanto ao mercado quanto ao projeto socialista – ainda que Pasolini abominasse o capitalismo e não acreditasse mais no socialismo, vivendo um dia após outro, sem esperança.

Como Pasolini veria o mundo se vivesse hoje? Ele se consideraria ainda um homem de esquerda depois de toda a corrupção a que os socialistas se entregaram no poder, revelada na Operação Mãos Limpas, que varreu os políticos tradicionais de esquerda e de direita na Itália, reformatando os velhos partidos? Creio que não, mas continuaria abominando o resultado da Operação Mãos Limpas: a eleição de Silvio Berlusconi, o mais corrupto dos corruptos…

Pasolini jamais seria de direita, mas ele não se definiria mais como um homem de esquerda, distanciando-se da visão deformada do mundo que hoje predomina nas mídias socialistas, agarradas aos seus velhos princípios apodrecidos. Denunciaria cada mentira deslavada publicada nesses tabloides vermelhos, dedicados a enquadrar seus adversários políticos,  e seria novamente linchado e assassinado. Só que, agora, não apenas pelos extremistas de direita, mas também pelos extremistas de esquerda.

Já em 1968, durante as manifestações estudantis, Pasolini sentiu o gosto amargo da perseguição esquerdista ao publicar seu famoso poema “Il PCI aos jovens” (O PCI aos jovens) e no qual ousou colocar-se ao lado dos policiais que espancavam os jovens de esquerda, porque estes seriam filhos de burgueses, os patrões do futuro, enquanto aqueles, filhos de camponeses e proletários, continuariam pobres, e seus filhos seriam os empregados daqueles que protestavam…

Nos anos de 1970 Pasolini percebeu que os jovens fascistas e os jovens socialistas não se distinguiam mais em suas aparências, um sinal de que a extrema-esquerda assemelhava-se à extrema-direita pela mesma recusa do humanismo, sepultado por um mal que engolfava a todos: o consumismo. Os próprios jovens do subproletariado, que eram os seus objetos de desejo, sofriam a mesma mutação, convertidos em delinquentes, capazes de todos os crimes.

Poucos levavam a sério o que Pasolini escrevia. Mas suas profecias realizaram-se todas, incluindo a de sua própria morte violenta, prevista diversas vezes em seus poemas, romances e filmes. Seu assassinato abalou a Itália, e fez seus críticos repensarem os discursos odiosos que publicavam sobre ele. Durante os funerais de Pasolini, seu grande amigo Alberto Moravia, impactado por essa morte, proferiu de improviso uma oração fúnebre emocionante:

Quero repetir mais uma vez, talvez para consolar-me um pouco da sua morte atroz. Quero dizer, pois, o que perdemos. Nós, seus amigos, vós outros, em suma, todo o povo italiano, perdemos um homem profundamente bom, meigo, gentil, com a alma cheia de milhões de sentimentos, um homem que odiava a violência. Sim, há muitos bons, mas um bom como Pasolini será difícil encontrar, será difícil que volte à Terra tão cedo… Depois perdemos o que alguns chama de o Outro, e que eu chamo o Mesmo, perdemos o Outro e o Mesmo… Um homem corajoso, muito mais corajoso que a maioria de seus contemporâneos… Era diverso, sim, sua diversidade consistia na coragem de dizer a verdade, ou aquilo que ele acreditava ser a verdade, e quando se acredita na verdade há alguma coisa que o faz dizê-la, sobretudo quando se é uma pessoa como Pasolini, inteligentíssimo e apegado ao real… Perdemos uma testemunha, uma testemunha diversa… Diverso também porque ele procurava provocar reações ativas e benéficas no corpo inerte da sociedade italiana… Isso se devia à sua ausência absoluta de cálculo, de compromisso, de prudência. Era diverso porque era desinteressado. Depois perdemos também o Mesmo. Que entendo pelo Mesmo? Ele era um grande escritor e cineasta, um alimento precioso para qualquer sociedade. Qualquer país seria feliz de possuir Pasolini entre os seus filhos. Perdemos, sobretudo, um poeta e os poetas não são tantos no mundo, só nascem uns quatro num século… Os poetas deviam ser sagrados…

Quase recaindo na mística do Cristo crucificado, mas logo evocando, de modo sub-reptício, o trágico destino de Orfeu, que ao introduzir a homossexualidade na Grécia foi despedaçado pelas bacantes – dois mitos caros ao diretor de O evangelho segundo São Mateus e Medéia –, o racional Moravia esboçou aqui, no calor da emoção, a melhor definição de Pasolini.

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A ‘BURRENSIA’ BRASILEIRA CONTRA PASOLINI

Pasolini, nos anos de 1940, jogando futebol com seus amigos.

Em doentio anticomunismo requentado da Guerra Fria, os autores do blog Gays de Direita lançaram sobre Pasolini uma série de mentiras, distorções e calúnias para facilitar o trabalho de apresentá-lo aos ignorantes dos Trópicos  como um “comunista patético caído no ostracismo”, com “tentativas de resgate da figura desrespeitada na cultura italiana, mesmo entre os comunistas, feitas por acadêmicos brasileiros e pelo Telecine Cult”. De tão grotesco, o patético artigo não merecia comentários, mas o respeito aos mortos e aos estrangeiros nos obriga a corrigir as distorções realizadas pela burrensia brasileira.

Primeira distorção: “Pedófilo da pior categoria, alternava suas atividades de escritor, poeta, critico político e pseudocineasta com relacionamentos mantidos com menores de idade que seduzia nas periferias de Roma.”.

Os Gays de Direita acreditam existir pedófilos da pior categoria. Logo acreditam haver pedófilos da melhor categoria. Que pedófilos da melhor categoria seriam esses? Pedófilos de Direita! Talvez os sacerdotes pedófilos sejam também considerados respeitáveis pelos Gays de Direita. Mas a distorção não se limita a isso. A própria noção de pedofilia é distorcida. Pedofilia consiste em desejar bebês e crianças e abusar sexualmente dessas vítimas indefesas. Os menores que atraíam Pasolini não eram bebês nem crianças. Eram adolescentes na força da idade, sexualmente ativos. Pasolini foi iniciado aos vinte e um anos por dois adolescentes do campo, mais jovens que ele, que praticamente o violentaram. Seu desejo sexual fixou-se nos adolescentes populares e vigorosos, que procuravam homens mais velhos para satisfazer sua sexualidade exacerbada e ao mesmo tempo ganhar deles favores, para depois se voltarem para suas namoradas com as quais se casavam e tinham filhos.

Segunda distorção: “Pasolini iniciou sua carreira, como todo comunista italiano na época, criticando o regime fascista de Benito Mussolini, em especial, condenando a adoção do novo idioma italiano que colocou um fim nas diferenças entre os diversos dialetos falados em diversas regiões do país até aquela época.”.

Não foi Mussolini quem adotou o “novo idioma italiano”. O que Mussolini fez foi apenas proibir o uso dos dialetos. Pasolini condenava o regime fascista também por essa proibição. Como estudioso das linguagens, o escritor amava os dialetos. E por isso dava aulas, escrevia e publicava, sob o fascismo, poemas em dialeto friulano. Era um ato de desafio ao pai fascista e de coragem diante do poder fascista. Não de subserviência como o da maioria dos artistas e intelectuais italianos, que aderiam então com maior ou menor entusiasmo ao regime de Mussolini.

Terceira distorção: “Influenciado por Freud e Marx, começou a carreira como poeta e não demorou a se tornar romancista, sempre recheando suas obras com elementos de incesto e pedofilia, marca evidente em todas as suas obras a tal ponto colossal que seria impossível listar aqui todas elas, mas cita-se aqui um exemplo, trecho do poema intitulado “identificação do incesto com a realidade”, extraído do livro Teorema: “[…] Fizeste-me encontrar a justa solução (e abençoada) para a minha alma e para o meu sexo”. A presença milagrosa do teu corpo (que convém um espírito grande demais) De jovem macho e de pai. Dissolveu o meu selvagem e perigoso Medo de menina… […]” (PASOLINI, 1968).

Incesto e pedofilia não são marcas da obra de Pasolini. O único incesto notável na obra de Pasolini encontra-se em sua adptação de Édipo rei, de Sófocles. Seu próprio edipianismo está longe de ser incestuoso, uma vez que não sentia desejo por um corpo de mulher. Quase não há crianças em seus romances e filmes. Pasolini amava jovens rapazes com pênis grandes e rijos, jamais fez ou faria sexo com bebês e crianças. Os Gays de Direita tomam metáforas por realidades, confundem os personagens de um romance com o autor das personagens. Isso é primário e burro.

Quarta distorção: “Pasolini acabou aderindo ao esforço iniciado por Mussolini e passou a escrever suas obras com a gramática italiana que se conhece ainda hoje, abandonando o bairrismo de Bologna, cidade onde nasceu.”.

Pasolini sempre escreveu em italiano e nunca deixou de fazê-lo. Apenas publicou seus primeiros livros de poemas em friulano. Mas esse dialeto não era um “bairrismo de Bolonha”, como acreditam os Gays de Direita, era o dialeto da região do Friuli, terra natal da mãe de Pasolini.

Quinta distorção: “No cinema, produziu filmes com uma técnica de filmagem extremamente rudimentar, senão amadora; era comum gravar uma cena e, em seguida, partir para a produção da próxima sem revisar o conteúdo filmado. Embora seus fãs remanescentes, sobretudo na Unicamp, busquem ainda qualificá-lo como um ‘gênio’ comparável a Vittorio De Sica ou Luchino Visconti, a qualidade de seus filmes é tão pobre que a maioria dos críticos de cinema, incluindo Rubens Edwald Filho, nem o consideram cineasta.”.

A genialidade de Pasolini nunca esteve no domínio das técnicas cinematográficas, mas no universo único que ele conseguiu criar no cinema sem uso de alta tecnologia. Ele estava muito mais interessado nas linguagens que nas técnicas, e não entender que no cinema cabem e convivem muitos cinemas é passar mais um atestado de burrice. O persistente e apaixonado, mas simplificador e limitado crítico de cinema brasileiro Rubens Ewald Filho parece ser o filtro máximo dos Gays de Direita para o entendimento do que vem a ser cinema.

Sexta distorção: “A investida mais lamentável deste homem destinado ao fracasso foi a de (tentar) se tornar um intelectual, senão filósofo, por meio de suas produções ‘artísticas’”.

Os Gays de Direita desconhecem a vasta produção teórica de Pasolini, pela qual é reconhecido em todo o mundo como um dos mais brilhantes intelectuais italianos do século XX. O escritor e cineasta nunca foi um fracasso. Começou sua carreira pobre, dando aulas particulares, andando de ônibus e morando em favela. Mas sabia que seu destino era maior, porque ao contrário de todos à sua volta, ele pensava. Seu grande intelecto levou-o ao sucesso. Com o bom dinheiro que lhe rendiam seus livros e, depois, seus filmes, ele comprou carros de luxo, pois amava exibir-se para os rapazes, e, no fim da vida, uma torre medieval, aonde se recolhia para criar. Seu projeto de vida foi bem sucedido sob todos os pontos de vista.

Sétima distorção: “Em sua tentativa patética de denegrir o capitalismo, Pasolini parece ter feito um filme [Salò] sobre o que era, na realidade, o sistema soviético. Lá, sim, mulheres procuravam saciar sexualmente os dirigentes do Partido Comunista para conseguir alguma mísera promoção. Os que atendiam às ordens enviadas às linhas de produção nunca recebiam nada senão uma morada patética construída pelo Estado, e um ‘pouco mais’ para comer. Em Cuba, por exemplo, é comum a população comer apenas um prato de arroz com uma banana, duas refeições por dia, um dia após o outro durante meses. Nas ditaduras comunistas, quem determina a vida e a morte das pessoas são os senhores dentro de seus palácios, com várias regalias negadas ao próprio povo.”.

Pasolini fez um filme sobre o que conheceu muito bem: a República fascista de Salò, instalada no norte da Itália pelas SS nazistas. Os Gays de Direita só conhecem o capitalismo frufru do consumo hedonista, das boates gays e das patricinhas & mauricinhos. Eles concentram todo o mal no sórdido comunismo, como se esse fosse o único regime totalitário de horror existente no mundo. Eles ignoram (ou amam secretamente) o capitalismo totalitário do nazifascismo, que Pasolini, em seu filme, aproximou profeticamente ao do consumismo impiedoso de hoje. Como observou Walter Siti, Mao Tsé-Tung e Fidel Castro jamais fizeram parte dos heróis de Pasolini (SITI, Un  Oeil en plus, Europe, n. 947, Pasolini, mar.  2008, p. 16). Eu acrescentaria: nem Lenine, nem Stalin, nem Trostki. Os heróis de Pasolini eram Marx e Gramsci. Perdeu tambem depois a fé em Gramsci. Se vivesse hoje talvez nem se definisse mais como um intelectual marxista. Mas continuaria escandalizando.

[Neste ponto, os Gays de Direita passam a discorrer sobre as relações do PT com o Movimento Gay, que com suas bandeiras escandalizariam a sociedade “como num circo de horrores”. Os Gays de Direita devem odiar ser gays, se é que o são, pois suas bandeiras são as do anticomunismo. Leram apenas o livro de Maria Betânia Amoroso, e Pasolini é “analisado” através da leitura dessa única especialista, como um pretexto. No final, retomam o suposto tema, em novas distorções.]

Oitava distorção: “Pino Pelosi confessou ter sido o autor do assassinato, sendo depois constatada pela polícia italiana, através de um interrogatório, a motivação do crime ser o de ciúmes. Pelosi, um garoto de 17 anos, tinha sido um dos namorados de Pasolini, então com 53 anos, e sentiu ciúmes quando se viu trocado por outro garoto. Tendo descoberto depois que troca rápida de amantes jovens era um costume de Pasolini, este ficou com raiva e decidiu se vingar. Punido pela sua lábia experiente de predador pedófilo, Pasolini foi agredido até a morte, com ossos quebrados e crânio esmagado, tendo seu corpo abandonado num campinho de futebol na periferia romana, região onde não apenas obtinha seus amantes, mas também recrutava os pobres para utilizar nos seus filmes. O jovem agressor recebeu uma pena de nove anos e meio de prisão, uma barganha por fazer ao mundo tal grande favor.”.

Pino Pelosi fez uma série de confissões contraditórias, que levaram recentemente à reabertura do processo. Num primeiro momento, declarou ter sido o único assassino. Mais tarde, declarou que não fora o único assassino. Há poucos anos voltou às mídias para esclarecer que ele não fora absolutamente o assassino: Pasolini teria sido assassinado por outros homens, mafiosos sicilianos, que o obrigaram a calar-se e assumir o crime sob a pena de ter os pais assassinados. Pelosi nunca diz a verdade e jamais foi “namorado” de Pasolini, que “caçava” rapazes pela aparência, sem conhecê-los. E se assassinar poetas é um “grande favor” que criminosos e fascistas prestam ao mundo, os Gays de Direita nem precisam mais revelar a simpatia que sentem pelos que definem as vidas “indignas de serem vividas” (Himmler).

Nona distorção: “Em 1970, cinco anos antes de sua morte, o solitário pseudocineasta tinha sido expulso do Partido Comunista Italiano, não por ser pedófilo ou por produzir filmes e livros moralmente degradantes e pornográficos, mas por ser homossexual. Se naquela época a morte de uma pessoa como ele era atribuída a um “crime da CIA”, nos dias de hoje seu nome iria parar nas listas de mortes das ONGs por aí existentes como sendo de ‘crime de homofobia’.”.

De fato, os comunistas expulsaram Pasolini de suas fileiras. Mas não em 1970. Pasolini foi expulso em 1949, pela federação do Partido Comunista Italiano (PCI) em Pordenone, segundo notícia publicada no jornal L’Unità daquele ano, “por indignidade moral”. Os comunistas expulsaram Pasolini de suas fileiras atribuindo sua homossexualidade “às deletérias influências de determinadas correntes ideológicas e filosóficas: como a dos Gide, Sartre e demais celebrados poetas e literatos, tomadas por progressistas quando, na realidade, adotam os aspectos mais deletérios da degeneração burguesa” (L’Unità a 29 de outubro de 1949).

Alguns biógrafos apresentaram uma versão fantasiosa do episódio, segundo a qual o rapaz “seduzido” por Pasolini teria confessado a um padre os “pecados” que teria sido induzido a cometer: violando o juramento de segredo do confessionário, o padre teria denunciado Pasolini e o exposto à sanha da imprensa local. Cheguei a adotar essa versão neocomunista, que deve ter sido a primeira que li, gravando-se em minha mente.  Ela se encontra em Pasolini (1980), da filósofa gramsciana Maria Antonietta Macchiocchi, que conheceu bem Pasolini, e que faleceu em Roma a 15 de abril de 2007, agravada pela observação de que “Roberto Roversi, um camarada de Pier Paolo, escreverá explicitamente num artigo que tudo foi inventado” (MACCHIOCCHI, Pasolini, p. 21).

Tudo foi inventado? Não. Uma versão anterior, apresentada por Enzo Siciliano, em Vita di Pasolini (1978), que me parecia mais confusa, foi confirmada pelos relatos de Nico Naldini em seus livros sobre seu famoso primo: Pasolini / Pages retrouvées dans les champs du Frioul (1984), Pasolini, una vita (1989), Il treno del buon appetito (1992), Mio cugino Pasolini (2000). Ele testemunhou todos os fatos, os registros policiais, os interrogatórios deprimentes, os processos.

Naldini acompanhava o jovem primo nessas noitadas inesquecíveis do imediato pós-guerra, em excursões noturnas pela região de Casarsa, onde morava. Pasolini lecionava numa escola de Valvasone, e vivia namorando os adolescentes do campo. Eles o haviam iniciado sexualmente e desde então Pasolini mantinha com eles jogos eróticos desejados de parte a parte. Com 27 anos, Pasolini ainda parecia um adolescente, e os adolescentes do campo o procuravam famintos.

Após um baile em Ramuscello, três jovens comentaram em altos brados, durante uma disputa, quem tinha feito o que com Pasolini na noite anterior. Um camponês que passava por eles ouviu a conversa e, horrorizado, denunciou o já visado jovem comunista à polícia local, por “atos obscenos e corrupção de menores”. Para os moralistas, os menores são sempre inocentes. Mesmo quando estupram, assaltam, matam ou se atracam sexualmente. Tão moralistas quanto os católicos, os fascistas e os comunistas, os Gays de Direita querem analisar a obra complexa de um gênio homossexual ignorando tudo sobre ela. O resultado é um escarro de homofobia.

Pasolini, nos anos de 1940, jogando futebol com seus amigos.

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PASOLINI ABJURARIA ‘SALÒ’

No Brasil, as manifestações político-partidárias contra a sub-reptícia censura de A Serbian Film evitaram abordar as questões essenciais. Para impedir o novo tipo de censura que emergiu com a provocação fascista que o filme contém em sua propaganda da irresponsabilidade humana diante da barbárie, seria preciso acabar com as Leis de Incentivo à Cultura, reformular o art. 241-C do Estatuto do Menor e do Adolescente e suprimir a Classificação Etária instituída pelo governo Lula, os três instrumentos que permitiram o veto ao filmezinho sórdido no Brasil “sem Censura”.

Contudo, num mundo onde o sadomasoquismo se globalizou não é mais ousadia nenhuma, da parte de um cineasta, realizar um filme mostrando o estupro de mulheres, bebês e crianças com requintes de crueldade, cortar línguas e furar olhos, arrancar o couro cabeludo, explodir cabeças, cortar pênis, empalar e torturar por horas a fio, etc. Uma nova geração nasceu e cresceu “curtindo” esse tipo de espetáculo. O cinema extremista era subversivo em 1975, quando Pier Paolo Pasolini realizou Salò, com fascistas promovendo orgias sangrentas e banquetes de fezes com adolescentes.

Mas o espírito transgressivo da representação explícita da violência moral, dentro de determinado contexto ideológico – seguido por Bernardo Bertolucci em Novecento (1900, 1976), onde um fascista arrebenta a cabeça de um bebê lançando-o contra a parede, cena à época cortada no Brasil – foi pouco a pouco banalizado e despolitizado, até se tornar mais um item de consumo para os nichos sadomasoquistas do mercado. Se vivesse hoje, Pasolini abjuraria seu filme extremista. O consumismo das imagens degradantes que Salò gerou por imitação superou a imaginação. Se Salò foi proibido em todo o mundo, hoje o DVD do filme pode ser encontrado em qualquer caçamba de supermercado. A escalada da violência de massa segue seu ritmo enfadonho no cinema gore pornográfico, que tornou o horror ‘excitante’, ‘chocante’ e ‘divertido’.

As massas não podem mais viver sem sua cota de excitantes imagens degradantes. E pobre do desavisado mais sensível que se constranger com o lixo despejado nas salas de cinema, nas TVs a cabo, na Internet, no celular! Todos precisam ser abalados, perturbados, degradados, vendo os maiores horrores e se divertindo com isso. Uma geração imberbe que nunca se rebelou contra a censura a milhares de filmes de arte cortados  ou suprimidos nas TVs abertas pode se revoltar imediatamente contra a censura de uma porcaria numa sala de cinema de arte frequentada basicamente pelas elites. Confundem lixo com arte e, na dúvida, é melhor consumir tudo. Como em Salò, aliás…

A campanha carapintada pela liberação de A Servian Film teria meu apoio se partisse de uma visão de mundo humanista. Infelizmente, o novo discurso militante é movido pelo mais torpe espírito consumista, e politicamente oportunista. A Caixa Econômica Federal agiu com o direito que lhe dá seu papel de produtora, sendo que as Leis de Incentivo nunca foram contestadas pelos carapintadas. Os moralistas do Partido dos Democratas (DEM) agiram com o direito que lhe dá o Estatuto da Criança e do Adolescente, cuja aprovação nunca foi contestada pelos carapintadas. E o Ministro da Justiça usou a artimanha da Classificação Etária, que não revoltou nenhum carapintada, pois implantada pelo popularíssimo governo Lula.

A elite carapintada sentiu-se tolhida na sua diversão sadomasoquista na salinha de arte que frequentava e se enfureceu, sobretudo, porque as ações de veto de exibição e apreensão de cópia partiram do DEM, o partido da odiosa direita, que simboliza para a elite esquerdista todo o mal do mundo. A elite esquerdista esquece-se de que a massa da população é tolhida diariamente pelas TVs, que censuram todo o cinema. E pelos instrumentos citados que permitem legalmente ao  governo de esquerda censurar os filmes que não agradam aos moralistas de plantão, seus aliados no poder, tenham eles ou não razão de se revoltarem, à maneira dos carapintadas.

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AS FALSAS ACUSAÇÕES

Execuções públicas de homossexuais e outros "precadores criminosos" no Irã

Execuções públicas de homossexuais e outros “pecadores criminosos” no Irã

A homofobia (que cresce em todo o mundo) é um sintoma bem visível dos movimentos que combatem, em todas as frentes, as liberdades individuais para a instauração de regimes totalitários. A 16 de abril de 2012, por exemplo, numa convenção de clérigos islâmicos na cidade iraniana de Qom, o veterano aiatolá Abdollah Javadi-Amoli denunciou que nós, ocidentais, somos inferiores a animais porque nossos parlamentos legalizavam os direitos dos homossexuais, algo de terrível porque esses pecadores trariam a AIDS para a sociedade humana como punição divina. E como, segundo o Corão, “os homossexuais são inferiores aos animais”, aqueles que os apoiam também o seriam:

Lot disse a seu povo: ‘Vocês cometeram pecados inéditos na história do mundo e no reino animal, no reino do demônio e no reino humano’. Nem pássaros, predadores, cães e porcos cometeram tais atos. De acordo com o Corão os que aprovam tais atos em seus parlamentos são inferiores a animais. […] O Corão diz que [os homossexuais] são inferiores aos animais. O Corão, as tradições e as proibições religiosas é o que nos faz humanos. É verdade que não estamos como o Ocidente em termos de [progresso] industrial. Mas enquanto eles são mais avançados [nesse campo], em termos de [sexualidade] eles são bárbaros. Segundo o Corro, suas vidas são mais baixas que as dos animais. Nem cães e porcos cometem o ato infame (sodomia) que eles querem legalizar em seus parlamentos. [Trad. MEMRI Report 4708].

No Irã, onde se fez a Revolução Islâmica, coerentemente se voltou a punir com a morte as práticas homossexuais. Um site iraniano chegou a pregar que os homossexuais deveriam, sempre de acordo com o Corão, ser queimados vivos ou atirados do alto de uma montanha. O regime iraniano tem preferido, contudo, talvez por razões práticas ligadas à modernidade, que eles fingem rejeitar, o enforcamento, de preferência em vistosos guindastes. Assim, entre centenas de pessoas enforcadas mensalmente naquele país, três o foram em setembro de 2011 em  Ahwaz por sodomia. E isso a despeito de Mahmoud Ahmadinejad, que prepara desde 2010 um baby bom no país, recomendando às  meninas iranianas que se casem aos dezesseis anos, nos garantir em 2007, na Columbia University, em Nova York, a inexistência de homossexuais no Irã, sendo esse um problema exclusivamente ocidental. Só não explicou como o Irã obtivera a tão sonhada por todos os fascistas solução final dos homossexuais.

Mas ao contrário do que os radicais islâmicos imaginam, a “limpeza étnica” dos homossexuais ordenada pelo Corão, e que voltou a ser praticada no Irã e em outros países islâmicos, não é uma solução nova, mas possui longa tradição no Ocidente, que é bárbaro pelos padrões islâmicos apenas nas ilhas de liberdade onde a democracia vingou e o Estado laico conseguiu reprimir suas próprias barbáries religiosas e políticas, separando a Igreja do Estado, banindo a Inquisição, que queimava vivos judeus, feiticeiras e homossexuais (quando constatava um coito completo); e vencendo o Nazifascismo, que os castrava e prendia em campos de concentração (como tantas outras vítimas étnicas e políticas). Muitos são os ocidentais, contudo, que tampouco querem ser “bárbaros” e “menos que animais” através do retorno aos tempos da Inquisição e do Nazifascismo.

Na Itália, por exemplo, Giancarlo Gentilini, vice-prefeito de Treviso, reagiu recentemente à denúncia de práticas homossexuais cometidas em certo local público da cidade pregando a “limpeza étnica para os culattone”. O termo culattone que caíra em desuso após o Nazifascismo, quando era usado em referência aos prisioneiros estigmatizados com o triângulo rosa nos campos de concentração, voltou assim à linguagem cotidiana na Itália. O sonho de Gentilini, eleito pela neofascista Lega Nord de Umberto Bossi, seria deportar (ou exterminar) os aproximados 150 mil homossexuais da região de Veneto, como bem observou Bepp Grillo.

No Brasil, temos um correlato nas declarações homofóbicas do deputado Jair Bolsonaro (do Partido Progressista), em suas companhas contra os direitos civis dos homossexuais; do filósofo Olavo de Carvalho (em aulas proferidas na linguagem mais indecente que se possa imaginar, seguidas por milhares de fãs no YouTube); de pastores evangélicos (que retiram demônios dos corpos dos gays convertidos que os procuram, em vídeos obscenos postados no YouTube); e de tantos outros fundamentalistas cristãos e neofascistas que não querem ser “bárbaros” como os democratas e liberais tolerantes com a homossexualidade, por medo da liberdade que temem como o demônio, por supostamente levar ao comunismo (o fascismo como  “defesa da liberdade”) e, mais concretamente, à confrontação com suas próprias fantasias homossexuais reprimidas.

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