Monthly Archives: Maio 2012

TRÊS CANÇÕES PARA PASOLINI

I

Fabrizio De André e Massimo Bubola compuseram a canção “Una storia sbagliata” (Uma história errada, 1980), alguns anos depois do assassinato de Pasolini, ocorrido em 1975, tentando absorver seu impacto e refletir sobre o indizível: “A nós, que escrevíamos canções, assim como, creio, a todos aqueles que se sentiam de alguma forma ligados ao mundo da literatura e do espetáculo, a morte de Pasolini nos deixara quase como órfãos. Vivemos seu desaparecimento como um grave luto, quase come se tratasse de um parente próximo.” De André e Bubola interpretaram a bela canção num programa de homenagem a Pier Paolo Pasolini, realizado pela RAI, em 1981. Aqui podemos ouvir a canção sobre curiosas imagens de uma enchente catastrófica.

È una storia da dimenticare

è una storia da non raccontare

è una storia un po’ complicata

è una storia sbagliata.

Cominciò con la luna sul posto

e fini’ con un fiume d’inchiostro

è una storia un poco scontata

è una storia sbagliata.

Storia diversa per gente normale

storia comune per gente speciale

cos’altro vi serve da queste vite

ora che il cielo al centro le ha colpite

ora che il cielo ai bordi le ha scolpite.

È una storia di periferia

è una storia da una botta e via

è una storia sconclusionata

una storia sbagliata.

Una spiaggia ai piedi del letto

stazione Termini ai piedi del cuore

una notte un po’ concitata

una notte sbagliata.

Notte diversa per gente normale

notte comune per gente speciale

cos’altro ti serve da queste vite

ora che il cielo al centro le ha colpite

ora che il cielo ai bordi le ha scolpite.

È una storia vestita di nero

è una storia da basso impero

è una storia mica male insabbiata

è una storia sbagliata.

È una storia da carabinieri

è una storia per parrucchieri

è una storia un po’ sputtanata

o è una storia sbagliata.

Storia diversa per gente normale

storia comune per gente speciale

cos’altro vi serve da queste vite

ora che il cielo al centro le ha colpite

ora che il cielo ai bordi le ha scolpite.

Per il segno che c’è rimasto

non ripeterci quanto ti spiace

non ci chiedere piu’ come è andata

tanto lo sai che è una storia sbagliata

tanto lo sai che è una storia sbagliata.

II

Diamanda Galás musicou e interpetrou um dos poemas mais conhecidos de Pasolini: “Supplica a mia madre” (Súplica à minha mãe), gravada no álbum Malediction and Prayer (1998). Assisti à performance dessa cantora grega, tão sinistra e extraordinária, quando ela se apresentou, há uns quinze anos, em Belo Horizonte. Há um registro da interpretação dramática que deu ao poema no Teatro Albeniz, de Madrid, a 15 de outubro de 2008, mas a melhor gravação que encontrei foi a deste clipe, que ilustra, com imagens aleatórias da cantora, uma gravação realizada durante seu tour internacional entre novembro de 1996 e junho de 1997, antes ainda da gravação da canção no álbum:

SUPPLICA A MIA MADRE

Pier Paolo Pasolini

È difficile dire con parole di figlio

ciò a cui nel cuore ben poco assomiglio.

Tu sei la sola al mondo che sa, del mio cuore,

ciò che è stato sempre, prima d’ogni altro amore.

Per questo devo dirti ciò ch’è orrendo consocere :

è dentro la tua grazia che nasce la mia angoscia

Sel insostitubile. Per questo è dannata

alla solitudine la vita che mi hai data.

E non voglio esser solo. Ho un’infinita fame

d’amore, dell’amore di corpi senza anima.

Perché l’anima è in te, sei tu, ma tu

sei mia madre e il tuo amore è la mia shiavitù

ho passato l’infanzia schiavo di questo senso

alto, irrimediabile, di un impegno immenso.

Era l’unico modo per sentire la vita

l’unica tinta, l’unica forma : ora è finita.

Sopravviviamo : ed dè la confusione

di una vita rinata fuori dalla ragione.

Ti supplico, ah, ti supplico : non voler morire.

Sono qui, solo, con te, in un futuro aprile…

 

SÚPLICA À MINHA MÃE

Pier Paolo Pasolini

Tradução: Luiz Nazario

É difícil dizer isso, com palavras de filho,

a quem no coração bem pouco assemelho.

És no mundo a única a saber, de meu coração,

quem sempre reinou, antes de qualquer paixão.

Por isso devo dizer-te o que de horrível sucede:

é de tua graça que a minha angústia procede.

És insubstituível. Por isso à solidão foi condenada

a vida que para viver neste mundo me foi dada.

Mas não quero ser sozinho. Tenho um apetite infinito

de amor, de amor por corpos sem espírito.

Porque a alma está em ti, és tu somente,

mas minha mãe és e, teu amor, uma corrente.

Passei a infância escravo desse alto senso,

irremediável, de um compromisso imenso.

Era a única maneira de sentir a vida,

a única tinta, a única forma: agora finda.

Sobrevivemos: e sobrevém a confusão

de uma vida renascida fora da razão.

Suplico-te, ah, suplico-te: morrer não queiras.

Aqui estou, só, contigo, numa futura primavera.

III

A terceira canção, num ritmo mais pop e batido, apresenta uma visão  quase religiosa de Pasolini. Composta e interpretada por Linda Valori, “Pasolini scrive” (Pasolini escreve), do álbum “Tutti quelli” (Todos aqueles, 2010), não deixa de ter seu encanto, ao abordar, de modo singelo, um tema tão difícil. O maior valor da cançoneta de Valori é o de exaltar a figura de um intelectual – gesto muito raro na cultura de massa:

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‘SALÒ’ POR FABIAN

Casamento de um fascista em 'Saló' (1975).  Imagem de © Fabian Cevallos/Sygma/Corbis.

Casamento de um fascista em ‘Saló’ (1975). Imagem de © Fabian Cevallos/Sygma/Corbis.

SALÒ: MISTERO, CRUDELTÀ E FOLLIA. Pasolini: Una testimonianza fotografica di Fabian. Roma: L’Erma di Bretschneider, 2005, 31p. ISBN: 88-8265-352-8.

Fabian Cevallos iniciou sua carreira como ator, atuando em Sierra Maestra, de Ansano Giannarelli, no papel de um fotógrafo de guerra. O personagem o marcou tanto que decidiu abraçar a carreira de fotógrafo. Por um golpe de sorte, foi convidado por Luchino Visconti para tirar três ou quatro fotografias do set de Ludwig. Mais tarde, trabalhando com o assessor de imprensa Simon Mizrahi, este tentou convencer Pasolini a deixar Fabian fotografar o set de Salò. Mas Pasolini não queria fotógrafos perturbando as filmagens de um filme “tão complicado”.

Certa tarde, rondando pela Cinecittà, Fabian encontrou Federico Fellini, que o apresentou a Pasolini, que já terminava de rodar Salò. Pasolini simpatizou com Fabian e deixou que ele fotografasse os últimos dias das filmagens. Foram nove dias em que o fotógrafo registrou as imagens do inferno nas últimas cenas rodadas do filme: as cruéis, insuportáveis, torturas realizadas no pátio da villa dos fascistas, dentro do Ciclo do Sangue.

No primeiro dia, Fabian não conseguiu fotografar nada, estarrecido com a encenação, que lhe recordava as torturas das ditaduras da América do Sul, de onde ele vinha. Depois, silenciosamente, com a máquina fotográfica na mão, para não perturbar as filmagens, que se desenrolavam como uma cerimônia, ele registrou inclusive a cena terrível onde uma mulher recebe choques numa espécie de cadeira elétrica, sendo em seguida sodomizada pelos rapazes fascistas, cena que desapareceu, como outras do filme, devido ao roubo de alguns rolos da película do laboratório onde estavam sendo reveladas.

Pasolini não pode conversar com Fabian durante as filmagens, mas prometeu encontrar-se com ele depois que o trabalho tivesse terminado, para ver as fotos e escolher algumas para a divulgação. Mas Pasolini foi assassinado antes disso. Fabian o soube através dos jornais. E estes, ao saberem de suas fotos, quiseram imediatamente comprá-las. Fabian recusou. Sentia que seria uma traição ao filme, um desrespeito a Pasolini.

Por trinta anos Fabian manteve suas fotos do set de Salò guardadas no seu arquivo particular. Lembrou-se novamente delas no caso das fotografias das torturas na guerra do Iraque e também durante o massacre dos escolares de Breslan na guerra da Chechênia. Nas homenagens feitas a Pasolini nos trinta anos de sua morte, Fabian sentiu ser aquele o momento certo de divulgar aquelas fotos, inéditas, de um tempo já quase esquecido.

No laboratório em que as revelava, um espanhol, ao ver a imagem do casamento de Salò, perguntou-lhe então: – É um casamento homossexual? Fabian explicou ao rapaz, ignorante de tudo, que era um filme de Pasolini. O espanhol exaltou-se: – Mas isso é simbólico, eu compro, eu compro, poderia ser a melhor imagem para a campanha [a favor do casamento gay] que estamos fazendo na Espanha. Mais uma vez Fabian teve de recusar, preservando a memória de Pasolini do horrendo consumismo contemporâneo.

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PASOLINI: AUTORRETRATOS

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(1) Autoritratto con la vecchia sciarpa  (Autorretrato com o velho cachecol, 1946); (2) Autoritratto (Autorretrato, 1947); (3) Autoritratto (Autorretrato, 1954); (4) a (9) Autoritratti (Autorretratos, série, 1965).

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PASOLINI ABJURARIA ‘SALÒ’

No Brasil, as manifestações político-partidárias contra a sub-reptícia censura de A Serbian Film evitaram abordar as questões essenciais. Para impedir o novo tipo de censura que emergiu com a provocação fascista que o filme contém em sua propaganda da irresponsabilidade humana diante da barbárie, seria preciso acabar com as Leis de Incentivo à Cultura, reformular o art. 241-C do Estatuto do Menor e do Adolescente e suprimir a Classificação Etária instituída pelo governo Lula, os três instrumentos que permitiram o veto ao filmezinho sórdido no Brasil “sem Censura”.

Contudo, num mundo onde o sadomasoquismo se globalizou não é mais ousadia nenhuma, da parte de um cineasta, realizar um filme mostrando o estupro de mulheres, bebês e crianças com requintes de crueldade, cortar línguas e furar olhos, arrancar o couro cabeludo, explodir cabeças, cortar pênis, empalar e torturar por horas a fio, etc. Uma nova geração nasceu e cresceu “curtindo” esse tipo de espetáculo. O cinema extremista era subversivo em 1975, quando Pier Paolo Pasolini realizou Salò, com fascistas promovendo orgias sangrentas e banquetes de fezes com adolescentes.

Mas o espírito transgressivo da representação explícita da violência moral, dentro de determinado contexto ideológico – seguido por Bernardo Bertolucci em Novecento (1900, 1976), onde um fascista arrebenta a cabeça de um bebê lançando-o contra a parede, cena à época cortada no Brasil – foi pouco a pouco banalizado e despolitizado, até se tornar mais um item de consumo para os nichos sadomasoquistas do mercado. Se vivesse hoje, Pasolini abjuraria seu filme extremista. O consumismo das imagens degradantes que Salò gerou por imitação superou a imaginação. Se Salò foi proibido em todo o mundo, hoje o DVD do filme pode ser encontrado em qualquer caçamba de supermercado. A escalada da violência de massa segue seu ritmo enfadonho no cinema gore pornográfico, que tornou o horror ‘excitante’, ‘chocante’ e ‘divertido’.

As massas não podem mais viver sem sua cota de excitantes imagens degradantes. E pobre do desavisado mais sensível que se constranger com o lixo despejado nas salas de cinema, nas TVs a cabo, na Internet, no celular! Todos precisam ser abalados, perturbados, degradados, vendo os maiores horrores e se divertindo com isso. Uma geração imberbe que nunca se rebelou contra a censura a milhares de filmes de arte cortados  ou suprimidos nas TVs abertas pode se revoltar imediatamente contra a censura de uma porcaria numa sala de cinema de arte frequentada basicamente pelas elites. Confundem lixo com arte e, na dúvida, é melhor consumir tudo. Como em Salò, aliás…

A campanha carapintada pela liberação de A Servian Film teria meu apoio se partisse de uma visão de mundo humanista. Infelizmente, o novo discurso militante é movido pelo mais torpe espírito consumista, e politicamente oportunista. A Caixa Econômica Federal agiu com o direito que lhe dá seu papel de produtora, sendo que as Leis de Incentivo nunca foram contestadas pelos carapintadas. Os moralistas do Partido dos Democratas (DEM) agiram com o direito que lhe dá o Estatuto da Criança e do Adolescente, cuja aprovação nunca foi contestada pelos carapintadas. E o Ministro da Justiça usou a artimanha da Classificação Etária, que não revoltou nenhum carapintada, pois implantada pelo popularíssimo governo Lula.

A elite carapintada sentiu-se tolhida na sua diversão sadomasoquista na salinha de arte que frequentava e se enfureceu, sobretudo, porque as ações de veto de exibição e apreensão de cópia partiram do DEM, o partido da odiosa direita, que simboliza para a elite esquerdista todo o mal do mundo. A elite esquerdista esquece-se de que a massa da população é tolhida diariamente pelas TVs, que censuram todo o cinema. E pelos instrumentos citados que permitem legalmente ao  governo de esquerda censurar os filmes que não agradam aos moralistas de plantão, seus aliados no poder, tenham eles ou não razão de se revoltarem, à maneira dos carapintadas.

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AS FALSAS ACUSAÇÕES

Execuções públicas de homossexuais e outros "precadores criminosos" no Irã

Execuções públicas de homossexuais e outros “pecadores criminosos” no Irã

A homofobia (que cresce em todo o mundo) é um sintoma bem visível dos movimentos que combatem, em todas as frentes, as liberdades individuais para a instauração de regimes totalitários. A 16 de abril de 2012, por exemplo, numa convenção de clérigos islâmicos na cidade iraniana de Qom, o veterano aiatolá Abdollah Javadi-Amoli denunciou que nós, ocidentais, somos inferiores a animais porque nossos parlamentos legalizavam os direitos dos homossexuais, algo de terrível porque esses pecadores trariam a AIDS para a sociedade humana como punição divina. E como, segundo o Corão, “os homossexuais são inferiores aos animais”, aqueles que os apoiam também o seriam:

Lot disse a seu povo: ‘Vocês cometeram pecados inéditos na história do mundo e no reino animal, no reino do demônio e no reino humano’. Nem pássaros, predadores, cães e porcos cometeram tais atos. De acordo com o Corão os que aprovam tais atos em seus parlamentos são inferiores a animais. […] O Corão diz que [os homossexuais] são inferiores aos animais. O Corão, as tradições e as proibições religiosas é o que nos faz humanos. É verdade que não estamos como o Ocidente em termos de [progresso] industrial. Mas enquanto eles são mais avançados [nesse campo], em termos de [sexualidade] eles são bárbaros. Segundo o Corro, suas vidas são mais baixas que as dos animais. Nem cães e porcos cometem o ato infame (sodomia) que eles querem legalizar em seus parlamentos. [Trad. MEMRI Report 4708].

No Irã, onde se fez a Revolução Islâmica, coerentemente se voltou a punir com a morte as práticas homossexuais. Um site iraniano chegou a pregar que os homossexuais deveriam, sempre de acordo com o Corão, ser queimados vivos ou atirados do alto de uma montanha. O regime iraniano tem preferido, contudo, talvez por razões práticas ligadas à modernidade, que eles fingem rejeitar, o enforcamento, de preferência em vistosos guindastes. Assim, entre centenas de pessoas enforcadas mensalmente naquele país, três o foram em setembro de 2011 em  Ahwaz por sodomia. E isso a despeito de Mahmoud Ahmadinejad, que prepara desde 2010 um baby bom no país, recomendando às  meninas iranianas que se casem aos dezesseis anos, nos garantir em 2007, na Columbia University, em Nova York, a inexistência de homossexuais no Irã, sendo esse um problema exclusivamente ocidental. Só não explicou como o Irã obtivera a tão sonhada por todos os fascistas solução final dos homossexuais.

Mas ao contrário do que os radicais islâmicos imaginam, a “limpeza étnica” dos homossexuais ordenada pelo Corão, e que voltou a ser praticada no Irã e em outros países islâmicos, não é uma solução nova, mas possui longa tradição no Ocidente, que é bárbaro pelos padrões islâmicos apenas nas ilhas de liberdade onde a democracia vingou e o Estado laico conseguiu reprimir suas próprias barbáries religiosas e políticas, separando a Igreja do Estado, banindo a Inquisição, que queimava vivos judeus, feiticeiras e homossexuais (quando constatava um coito completo); e vencendo o Nazifascismo, que os castrava e prendia em campos de concentração (como tantas outras vítimas étnicas e políticas). Muitos são os ocidentais, contudo, que tampouco querem ser “bárbaros” e “menos que animais” através do retorno aos tempos da Inquisição e do Nazifascismo.

Na Itália, por exemplo, Giancarlo Gentilini, vice-prefeito de Treviso, reagiu recentemente à denúncia de práticas homossexuais cometidas em certo local público da cidade pregando a “limpeza étnica para os culattone”. O termo culattone que caíra em desuso após o Nazifascismo, quando era usado em referência aos prisioneiros estigmatizados com o triângulo rosa nos campos de concentração, voltou assim à linguagem cotidiana na Itália. O sonho de Gentilini, eleito pela neofascista Lega Nord de Umberto Bossi, seria deportar (ou exterminar) os aproximados 150 mil homossexuais da região de Veneto, como bem observou Bepp Grillo.

No Brasil, temos um correlato nas declarações homofóbicas do deputado Jair Bolsonaro (do Partido Progressista), em suas companhas contra os direitos civis dos homossexuais; do filósofo Olavo de Carvalho (em aulas proferidas na linguagem mais indecente que se possa imaginar, seguidas por milhares de fãs no YouTube); de pastores evangélicos (que retiram demônios dos corpos dos gays convertidos que os procuram, em vídeos obscenos postados no YouTube); e de tantos outros fundamentalistas cristãos e neofascistas que não querem ser “bárbaros” como os democratas e liberais tolerantes com a homossexualidade, por medo da liberdade que temem como o demônio, por supostamente levar ao comunismo (o fascismo como  “defesa da liberdade”) e, mais concretamente, à confrontação com suas próprias fantasias homossexuais reprimidas.

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SADOMASOQUISMO E DESENCANTO

Salò d’hier et d’aujourd’hui (Salò de ontem e de hoje, França, 2002, 33’, cor e p&b), de Amaury Voslion, é um documentário de curta-metragem sobre a realização de Salò o le 120 giornate di Sodoma (Salò, ou os 120 dias de Sodoma, 1975), trazendo cenas reveladoras dos métodos de filmagem de Pasolini; depoimentos do cineasta e de seus colaboradores, incluindo alguns dos atores, que refletem sobre a diferença daquilo que eles viviam no set do filme, cuja  rodagem transcorria de modo relaxado e até divertido, e a aparência final, terrível, assombrosa, quase insuportável, que Salò ganhou nas telas, após a edição.

Mas se os atores não percebiam as nuvens negras avizinharem-se antes da tempestade, Pasolini já intuíra a presença delas. Para o diretor, as filmagens podiam até ser divertidas, mas não deixavam de ser tensas. Ele havia sido ameaçado de morte.  A polícia teve de cercar o set para garantir sua segurança. E ainda assim gangues fascistas conseguiram roubar algumas latas da película já rodada, com partes importantes do filme. Terminada a edição, o filme foi proibido em todo o mundo. E antes que pudesse acompanhar a carreira de Salò, Pasolini foi assassinado.

A morte do escritor e cineasta foi provavelmente o resultado de uma emboscada.  Ele teria sido atraído pelo jovem delinquente e prostituto Pino Pelosi. Ladrãozinho violento, emocionalmente desequilibrado, ele teria servido de isca para um crime político, cometido pelos mesmos mafiosos fascistas que roubaram as latas de Salò e que deviam estar a seguir os passos do cineasta, conhecendo seus hábitos noturnos e o tipo físico dos rapazes que ele apreciava, sendo Ninetto Davoli o ideal do jovem popular que atraía Pasolini como o odor das flores atrai a abelha.

Pelosi lembrava Ninetto, e era, como ele, um rapaz da vida, malandrinho, de cabelos morenos, encaracolados. Nas cenas finais de Salò d’hier et d’aujourd’hui, reencontramos Ninetto,  maduro e quase irreconhecível, sem a graça angélica que ostentava quando estrelava os filmes de Pasolini. Sentimos então uma tristeza típica de toda a obra pasoliniana, pois nem Ninetto, o grande amor do cineasta, escapou aos efeitos da corrupção que os jovens sofrem sob o consumismo, aburguesando-se ou tornando-se criminosos – o tema principal de Salò, como Ninetto o percebeu, expressando-se com dificuldade.

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MOSTRA PASOLINI EM FORTALEZA

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