O PROTESTO DE JEAN-LOUIS BORY

Em 1975, na França, no programa radiofônico Le masque et la plume (A máscara e a pena), Jean-Louis Bory rendeu homenagem a Pasolini e protestou contra as aberrações de uma imprensa francesa que fazia eco a certa imprensa italiana imunda, dando como exemplo a manchete que um conhecido jornal francês estampara sobre uma foto do cadáver desfigurado do poeta assassinado no abandonado Idroscalo de Ostia: VEJAM ESSE MONTE DE LIXO: ERA PASOLINI. Bory declarou, com ira sagrada: “Quem cospe num cadáver recebe de volta o cuspe na sua cara!”

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PASOLINI INÉDITO

Guido Pasolini

Guido Pasolini

CARTA AO IRMÃO PARTISAN MORTO NA GUERRA

Uma carta datilografada encontrada entre as cartas que Antonella Giordano está organizando para a nova edição da correspondência de Pasolini para a editora Garzanti, datada de maio de 1945, quando chega a notícia oficial da morte de Guido, irmão de Pier Paolo, partisan assassinado durante o massacre de Porzûs. Publicamos um excerto graças a Graziella Chiarcossi. (Repubblica, 28 ottobre 2015)

Pier Paolo Pasolini

A dor mais excruciante nasceu quando vimos uma foto sua de quando tinha quatorze anos; aquele seu rosto se parece comigo, com os olhos curiosos e uma expressão sofrida de rapaz robusto, mas demasiado entusiástico, que deixou em seu coração um ímpeto, uma raiva de choro, como se todo o nosso passado comum tivesse submergido. Você ouviu como a mamãe gritou, chamando por você? Agora ela está aqui, sentada, silenciosa. Se você a visse, como a reconheceria! A dor infinita que você lhe deu não a marcou, é sempre a nossa jovenzinha, com o seu querido rosto da manhã, quando ainda não fez a toalete, e despachada se fatiga pela casa.

É ali que ela fica em silêncio, com um daqueles seus lenços claros na cabeça; Você a reconheceria perfeitamente, ela não mudou nada; mas talvez você notaria como nova, como notei, aquela expressão em seu rosto, especialmente na boca, que talvez seja de tristeza, mas eu me iludo, me esforço em acreditar que seja uma espécie de sorriso. Não se passaram duas noites e um dia de quando soubemos de sua morte e apenas uma noite de quando aquela sua foto deu-nos por um momento a sensação, a adivinhação da nossa dor imensa.

E então você se espantará de como eu possa ter conseguido segurar a caneta na mão e começado a escrever; eu também me espanto, faz somente três dias, mas eu estava mergulhado há muitos meses em pensamentos desse tipo. Mas de que adianta nosso espanto? Eis uma realidade: você ali num dia deste inverno, morto sobre um gramado, ou sabe lá onde; e eis outra realidade: eu que neste quartinho de Versuta, que você conheceu quando ainda não tínhamos trazido os móveis, eu que agora escrevo a você.

Devemos nos render. E a rendição, vê-se, é necessária; vem do nosso próprio corpo, aquele que você não tem mais, e eu tenho. É necessária porque escrevendo a você não penso que esteja morto, mas vivo, ainda que infalivelmente diferente daquele rapaz que foi meu irmão, e que eu vi perfeitamente, carnalmente, fatalmente tal e qual naquela fotografia.

Tradução: Luiz Nazario

ORIGINAL:

PASOLINI INEDITO: LA LETTERA AL FRATELLO PARTIGIANO MORTO IN GUERRA

Una lettera dattiloscritta ritrovata tra le carte da Antonella Giordano che sta curando per Garzanti la nuova edizione dell’epistolario di Pasolini. Risale al maggio 1945, quando arriva la notizia ufficiale della morte di Guido, fratello di Pier Paolo, partigiano ucciso durante l’eccidio di Porzûs. Ne pubblichiamo uno stralcio grazie a Graziella Chiarcossi

Il dolore più straziante ci è nato quando abbiamo visto una tua fotografia di quando avevi quattordici anni; quel tuo viso che m’assomiglia, con gli occhi cerchiati e un’espressione patita di ragazzo robusto ma troppo entusiasta, ci ha gettato nel cuore un impeto, una rabbia di pianto, come se tutto il nostro passato comune ci avesse sommerso. Hai udito come la mamma gridava, chiamandoti? Ora essa è qui, seduta, che tace. Se tu la vedessi, come la riconosceresti! L’infinito dolore che le hai dato non l’ha segnata, è sempre la nostra giovinetta, col suo viso carissimo della mattina, quando non ha ancora fatto la toeletta, e sfaccenda e s’affatica per casa.

È lì che tace, con uno di quei suoi fazzoletti chiari sul capo; tu la riconosceresti, perfettamente, non è mutata per nulla; ma forse ti riuscirebbe un po’ nuova, come a me, quella sua espressione, soprattutto della bocca, che è forse un atteggiamento di dolore, ma io m’illudo, mi sforzo a credere che sia una specie di sorriso. Non sono passati che due notti e un giorno da che abbiamo saputo della tua morte, e una sola notte da quando quella tua fotografia ci ha dato per un attimo la sensazione, la divinazione dell’immensità del nostro dolore.

E quindi tu ti meraviglierai come io possa aver preso la penna in mano, e incominciato a scriverti; me ne sarei meravigliato anch’io, solo tre giorni fa, benché coi pensieri di questa specie mi sia da molti mesi approfondito. Ma a che serve la nostra meraviglia? Ecco una realtà: tu laggiù un giorno di questo inverno, morto su un prato, o chissà dove; ed ecco un’altra realtà: io che ora, in questa stanzetta di Versuta, che tu hai conosciuto quando non vi avevamo ancora trasportato i mobili, io che ora ti scrivo.

Dobbiamo arrenderci. E la resa, si vede, è necessaria; viene dal nostro corpo medesimo, quello che tu non hai più, ed io ho. È necessario poiché scrivendoti non penso che tu sia morto, ma vivo, anche se immancabilmente diverso da quel ragazzo che fu mio fratello, e che ho visto perfettamente, carnalmente, fatalmente tale nella fotografia.

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ARTES E CRIMES DIGITAIS

Se no século XIX a fotografia veio substituir a arte como uma representação mais ou menos fiel da realidade, levando os artistas a se refugiarem no universo das abstrações e do surrealismo, no século XX o estatuto da imagem fotográfica enquanto representação mais ou menos fiel da realidade foi por sua vez sabotado pela total transgressão das normas éticas das ditaduras totalitárias.

Na URSS de Stalin as autoridades que caíam em desgraça eram apagadas das fotografias publicadas, em fotomontagens sinistras. As cópias retocadas escreviam uma nova História, na qual aquelas pessoas transformavam-se em não-pessoas. A nulificação estendia-se para os jornais, as revistas, os livros, onde os nomes dos caídos eram suprimidos e nunca mais mencionados, até o esquecimento completo de suas existências.

Na Alemanha de Hitler, os cineastas especializaram-se no falso documentário, mesclando realidade e propaganda, criando uma realidade imaginária, distorcida pela doutrina, em filmes como O eterno judeu ou Hitler doa uma cidade aos judeus. A realidade era ainda remodelada na produção massiva dos cinejornais, que transmitiam a visão nazista dos fatos. Durante a guerra, nenhuma edição do semanário Die Deutsche Wochenschau era exibida sem passar pelo crivo pessoal de Goebbels e do próprio Führer.

A propaganda manipulava o público com representações falseadas da realidade, a serem vistas como suas mais fiéis representações, com o objetivo de incutir no público uma ideia distorcida dos fatos, uma deformação do real através de sua própria representação.

Os artistas de vanguarda, ao contrário, usavam a fotomontagem (que remonta à Era Vitoriana, em estampas bizarras, precursoras do surrealismo, ou em falsificações poéticas como a série das fadas de Cottingley, que chegou a ludibriar Conan Doyle), para criar um mundo alucinante, com sentido crítico e satírico, próximo dos sonhos e dos pesadelos, como nas obras de John Heartfield, Dora Maar, Grete Stein ou J. K. Potter.

No século XXI, a sabotagem do estatuto de realidade da imagem atingiu a perfeição com a tecnologia digital, não sendo mais possível saber se uma imagem representa uma realidade ou foi manipulada para parecer uma representação da realidade. A manipulação tornou-se uma prática popular, generalizada com a difusão massiva de programas como o Photoshop.

Os artistas da fotografia passaram a criar realidades imaginárias fundindo o mundo real com sua própria imaginação. A fotografia surrealista atingiu um novo patamar de sofisticação estética e perfeição técnica nas obras de um Erik Johansson, de um Thomas Barbèy, de uma Ysabel LeMay, de um Simen Johan.

A imagem fotográfica é agora algo entre o real e o imaginário, um híbrido para o qual olhamos (ou deveríamos olhar) com suspeita e desconfiança. A admiração que uma fotografia perfeita despertava deve hoje ser comedida, sem o entusiasmo natural experimentado diante da representação fiel de uma realidade existente. Não há mais representações seguras, tudo pode ser fraudado à perfeição.

O que diria Pasolini da revolução da imagem digital? Ele teria  muito a dizer da nova arte que floresce na sociedade de consumo e torna a própria realidade consumível, ao ser banalizada, e colocada entre parêntesis, sob uma eterna suspeita, através da sua desmaterialização, sem esquecer a colorização digital, que atualiza todo o passado para fins de diversão e de entretenimento.

No contexto dessa revolução epistemológica, o revisionismo histórico parece-nos uma ideologia que pode ter nascido da sabotagem sistemática do estatuto de realidade da imagem. Fruto de seu tempo fluido, ele cria uma realidade paralela, um mundo paralelo, um Brasil Paralelo, nos quais os traumas históricos são revistos e atenuados, colorizados, de modo a favorecer os carrascos: a Inquisição não matou ninguém, a Escravidão não foi tão ruim, o Holocausto nunca existiu, o Regime Militar foi um período maravilhoso, etc.

Pasolini não escapou de ser falseado pela nova arte. A fotógrafa Tiziana Fato criou uma imagem em que o escritor e cineasta passeia à noite por Bali, numa cidade esvaziada de gente e de vida, na qual o poeta parece vaguear como um fantasma solitário:

030. FOTOMONTAGEM. Pasolini a Bari. Montagem de Tiziana Fato.

Trata-se de uma fotomontagem digital. Na verdade, este Pasolini estava passeando por Nova York, em 1966, em plena Broadway fervilhante de gente e de vida, extasiado diante de tantas novidades, entusiasmado com uma América que lhe parecia encarnar o momento da Revolução, na foto original, de autoria de Duilio Pallottelli:

030. FOTOMONTAGEM. PASOLINI NA AMÉRICA - NY, 1966. Foto de Duilio Pallottelli (2)

Qual o sentido dessas manipulações artísticas da imagem? Criar uma representação semi-inédita de uma realidade desejada, que nunca existiu? Ter o prazer dúbio de confundir o presente com o passado? Destruir o que resta da memória dos fatos históricos? Demonstrar o próprio virtuosismo na falsificação da representação do real? Sem dúvida Pasolini teria muito o que dizer sobre a nova era da imagem digital e seu papel perturbador de consumo da própria realidade.

 

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O RAPAZ MOTOR

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Il ragazzo motore (O rapaz motor, Itália, 1967, 12’, p&b, doc). Direção: Paola Faloja. Roteiro: Paola Faloja, a partir de uma história contada por Pier Paolo Pasolini. Trilha: Alberico Vitalini. Fotografia: Giancarlo Lari. Edição: Mario Masini. Produção: Paola Faloja, Aldo Raparelli / Corona Cinematografica. Com Pier Paolo Pasolini (narração).

O filme parte de “uma história acontecida a Pier Paolo Pasolini, contada por ele mesmo”. Enquanto uma estranha engrenagem se move lentamente ao som de uma música de filme de ficção científica, a voz de Pasolini conta que, passeando por uma estrada que não sabe mais qual nem a que distância de Roma – o que ele considera significativo – encontrou um jovem que lhe pediu carona.

Pasolini parou o carro. O caronista era um rapaz com seus dezoito anos, de cujo rosto Pasolini não se recorda, e que se pôs a falar de coisas sobre as quais ele também não se recorda, enquanto se dirigiam a uma meta comum, também já esquecida – esses seus lapsos, Pasolini observa, são igualmente significativos.

As não-lembranças têm uma razão de ser. E ele não se recorda nem do rosto do rapaz, nem de suas palavras – pronunciadas com uma expressão ausente -, nem de sua voz, nem mesmo de sua presença física.

Para romper um silêncio embaraçoso, Pasolini diz que começou a fazer algumas perguntas ao jovem: sobre os seus gostos, sobre o que gostaria de fazer na vida, se estudava, se não estudava. Ele disse que não, que nada lhe interessava.

“Você não se interessa pelos estudos que está fazendo?”. “Não.”. “Não se interessa pelos esportes?”. “Não.” “Interessa-se ao menos por alguma garota?”. “Não.” “Mas… afinal, o que o interessa?”. Depois de um momento o rapaz respondeu: “Os motores.”. O Teremim da música de filme de ficção científica volta a soar.

Agora o filme deixa o cenário da estranha engrenagem, seguindo como um documentário sobre os jovens italianos obcecados por motocicletas, lambretas, oficinas mecânicas, competições de veículos e motores envenenados.

Diante de um bar do bairro os amigos encontram-se para jogar fliperama e fazer corridas clandestinas com suas máquinas. Eles próprios modificaram os motores. O vitorioso ganhará a bolada das apostas. Mas no final da competição, dois rapazes se chocam e caem de suas motos. Um deles bate a cabeça na calçada, agoniza e morre.

O curto documentário poético de Paola Faloja revela, com a cumplicidade de Pasolini, o universo barulhento e masculino dos apaixonados por motores, sua vida agitada, suja de graxa, desperdiçada em corridas e que frequentemente termina tragicamente, mas como uma tragédia sem sentido.

Os jovens que surgem na Itália de 1960 parecem a um intelectual humanista como Pasolini verdadeiros E.T.s (o que é sugerido pelo uso do Teremim na trilha sonora). O poeta nada pode ter em comum com o rapaz motor, pelo que recusa recordar sua existência ininteligível. Ele sofre essa presença como a revelação amarga da mutação antropológica dos jovens na sociedade de consumo.

[http://cinestore.cinetecadibologna.it/video/dettaglio/19008]

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RECORDANDO PASOLINI

Na Itália, os 40 anos da morte de Pasolini foram lembrados pela RAI com uma maratona de programas, reportagens, documentários e teledramas, já incluídos na atualização da seção Pasoliniana Audiovisual deste blog.

No Brasil, o SESC Palladium, em Belo Horizonte, tomou a dianteira das homenagens e realizou, em julho, a mostra Pasolini e o Cinema de Poesia, com quase todos os filmes de Pasolini, convidando-me para ministrar um minicurso de quatro dias, Pasolini: Vida e Obra, dentro do qual pude exibir os curtas-metragens do cineasta, que considero parte essencial de sua obra, e que não haviam sido incluídos na retrospectiva. O curso teve mais de cinquenta inscritos, o que demonstra o interesse que Pasolini continua a despertar.

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Mais tarde, em outubro, a Biblioteca Mário de Andrade, em São Paulo, organizou, por ocasião do lançamento do livro Poemas: Pier Paolo Pasolini, com organização de Maurício Santana Dias (tradutor) e Alfonso Berardinelli, pela Editora Cosac Naify, o evento Um dia e duas noites com Pier Paolo Pasolini (1922-1975), também chamado Jornada Pier Paolo Pasolini ou ainda Jornada Pier Paolo Pasolini / Michel Lahud.

A dupla Jornada incluiu o ciclo de debates Demasiado Pasolini, com os especialistas Alfonso Berardinelli, Mariarosaria Fabris, João Silvério Trevisan, Eduardo Sterzi, Maurício Santana, Cláudia Tavares, Maria Betânia Amoroso, Roan Costa Cordeiro e José Miguel Wisnik.

No mesmo encontro foi feita uma homenagem a Michel Lahud (1949-1992), “um dos primeiros nomes a falar sobre Pasolini no Brasil”, com a projeção de sua conferência Pasolini: paixão e ideologia (1987).

[Dei-me conta de ter “falado” de Pasolini ainda antes de Lahud: meu Pasolini, Orfeu na sociedade industrial foi publicado pela Brasiliense em 1982, seu A vida clara em 1992; três traduções minhas de livros de Pasolini para a Brasiliense precederam a tradução de Os jovens infelizes por Lahud…]

O mesmo evento programou ainda a exposição Pasolini e Seus Universos, com “instalações” de Lourival Cuquinha, Mônica Piloni e Osvaldo Piva. No encerramento, o Grupo Teatro de Narradores apresentou a peça Demasiado Pasolini e o Grupo Sensus a performance Polvos Poéticos, “sussurrando nos ouvidos do público trechos das obras de Pasolini”.

Por fim, no Terraço da Biblioteca teve lugar um “sarau picante” intitulado Poéticos & Eróticos: um sarau demasiadamente Pasolini, com artistas de diversas linguagens convidando o público a “se expressar”. O DJ Rebel K “com suas pérolas musicais”, completou o “clima festivo da noite”.

PARA SABER MAIS:

NAZARIO, Luiz. Todos os corpos de Pasolini. São Paulo: Editora Perspectiva, 2007. 378p. Disponível nas lojas: Amazon (melhor preço); Submarino; Americanas; Livraria Cultura; Livraria da Travessa; Livraria da Folha; Siciliano – entre outras (atualizações no site Buscapé).

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40 ANOS SEM PASOLINI

Pasolini em Roma, 1967. Foto de Franco Vitale, Reporters Associati & Archivi Mondadori Portfolio.

Pasolini em Roma, 1967. Foto de Franco Vitale, Reporters Associati & Archivi Mondadori Portfolio.

Há 40 anos Pasolini era assassinado no sinistro ambiente suburbano e de desolada pobreza do Idroscalo de Óstia. Essa praia suja lembra os cenários de seus primeiros filmes, onde subproletários da periferia de Roma morriam vitimados pelas circunstâncias. O trágico fim de Pasolini, como o de um de seus personagens trágicos, transformou instantaneamente sua legenda negra numa legenda dourada, dando razão às suas profecias, realidade às suas “paranoias”.

Vivo, Pasolini era abominado, censurado, desprezado, considerado como um porco, um degenerado, um pervertido. Morto, passou a ser cultuado, celebrado e restaurado, visto como um santo, um gênio, um mito. Odiado pela esquerda e pela direita, hoje Pasolini é recuperado à direita e à esquerda: seu nome ainda dá algum lucro aos conglomerados das mídias, e suas ideias continuam a agredir o senso comum, interessando tanto ao mercado quanto ao projeto socialista – ainda que Pasolini abominasse o capitalismo e não acreditasse mais no socialismo, vivendo um dia após outro, sem esperança.

Como Pasolini veria o mundo se vivesse hoje? Ele se consideraria ainda um homem de esquerda depois de toda a corrupção a que os socialistas se entregaram no poder, revelada na Operação Mãos Limpas, que varreu os políticos tradicionais de esquerda e de direita na Itália, reformatando os velhos partidos? Creio que não, mas continuaria abominando o resultado da Operação Mãos Limpas: a eleição de Silvio Berlusconi, o mais corrupto dos corruptos…

Pasolini jamais seria de direita, mas ele não se definiria mais como um homem de esquerda, distanciando-se da visão deformada do mundo que hoje predomina nas mídias socialistas, agarradas aos seus velhos princípios apodrecidos. Denunciaria cada mentira deslavada publicada nesses tabloides vermelhos, dedicados a enquadrar seus adversários políticos,  e seria novamente linchado e assassinado. Só que, agora, não apenas pelos extremistas de direita, mas também pelos extremistas de esquerda.

Já em 1968, durante as manifestações estudantis, Pasolini sentiu o gosto amargo da perseguição esquerdista ao publicar seu famoso poema “Il PCI aos jovens” (O PCI aos jovens) e no qual ousou colocar-se ao lado dos policiais que espancavam os jovens de esquerda, porque estes seriam filhos de burgueses, os patrões do futuro, enquanto aqueles, filhos de camponeses e proletários, continuariam pobres, e seus filhos seriam os empregados daqueles que protestavam…

Nos anos de 1970 Pasolini percebeu que os jovens fascistas e os jovens socialistas não se distinguiam mais em suas aparências, um sinal de que a extrema-esquerda assemelhava-se à extrema-direita pela mesma recusa do humanismo, sepultado por um mal que engolfava a todos: o consumismo. Os próprios jovens do subproletariado, que eram os seus objetos de desejo, sofriam a mesma mutação, convertidos em delinquentes, capazes de todos os crimes.

Poucos levavam a sério o que Pasolini escrevia. Mas suas profecias realizaram-se todas, incluindo a de sua própria morte violenta, prevista diversas vezes em seus poemas, romances e filmes. Seu assassinato abalou a Itália, e fez seus críticos repensarem os discursos odiosos que publicavam sobre ele. Durante os funerais de Pasolini, seu grande amigo Alberto Moravia, impactado por essa morte, proferiu de improviso uma oração fúnebre emocionante:

Quero repetir mais uma vez, talvez para consolar-me um pouco da sua morte atroz. Quero dizer, pois, o que perdemos. Nós, seus amigos, vós outros, em suma, todo o povo italiano, perdemos um homem profundamente bom, meigo, gentil, com a alma cheia de milhões de sentimentos, um homem que odiava a violência. Sim, há muitos bons, mas um bom como Pasolini será difícil encontrar, será difícil que volte à Terra tão cedo… Depois perdemos o que alguns chama de o Outro, e que eu chamo o Mesmo, perdemos o Outro e o Mesmo… Um homem corajoso, muito mais corajoso que a maioria de seus contemporâneos… Era diverso, sim, sua diversidade consistia na coragem de dizer a verdade, ou aquilo que ele acreditava ser a verdade, e quando se acredita na verdade há alguma coisa que o faz dizê-la, sobretudo quando se é uma pessoa como Pasolini, inteligentíssimo e apegado ao real… Perdemos uma testemunha, uma testemunha diversa… Diverso também porque ele procurava provocar reações ativas e benéficas no corpo inerte da sociedade italiana… Isso se devia à sua ausência absoluta de cálculo, de compromisso, de prudência. Era diverso porque era desinteressado. Depois perdemos também o Mesmo. Que entendo pelo Mesmo? Ele era um grande escritor e cineasta, um alimento precioso para qualquer sociedade. Qualquer país seria feliz de possuir Pasolini entre os seus filhos. Perdemos, sobretudo, um poeta e os poetas não são tantos no mundo, só nascem uns quatro num século… Os poetas deviam ser sagrados…

Quase recaindo na mística do Cristo crucificado, mas logo evocando, de modo sub-reptício, o trágico destino de Orfeu, que ao introduzir a homossexualidade na Grécia foi despedaçado pelas bacantes – dois mitos caros ao diretor de O evangelho segundo São Mateus e Medéia –, o racional Moravia esboçou aqui, no calor da emoção, a melhor definição de Pasolini.

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Os números de 2014

Os duendes de estatísticas do WordPress.com prepararam um relatório para o ano de 2014 deste blog.

Aqui está um resumo:

Um comboio do metrô de Nova Iorque transporta 1.200 pessoas. Este blog foi visitado cerca de 3.800 vezes em 2014. Se fosse um comboio, eram precisas 3 viagens para que toda gente o visitasse.

Clique aqui para ver o relatório completo

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UMA EXISTÊNCIA SUBVERSIVA

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Entrevista concedida a Daysi Bregantini, em outubro de 2014, para o Dossiê Pasolini, da Revista Cult. A entrevista não foi publicada pela revista. O ensaio que escrevi para o Dossiê também não, pois o prazo concedido foi algo impossível. Ele deverá ser publicado em livro, no próximo ano, pela Universidade Federal do Pará.

9. Autoritratto (1965).

Pasolini respondeu a 33 processos antes de ser assassinado em 2 de novembro de 1975. O crime provavelmente foi político, embora ainda permaneça envolto em mistérios.  Por que ele foi tão brutalmente perseguido, inclusive expulso do Partido Comunista Italiano, em 1949? A Itália era realmente um lugar horrível?

Luiz Nazario: Pasolini era um intelectual completamente atípico, um devorador de livros que acumulava uma cultura impressionante, dominando diversos campos do saber (pintura, literatura, teatro, cinema) tanto na teoria quanto na prática, um erudito que traduzia peças antigas do grego e do latim, um pensador que revolucionou o marxismo com sua Semiologia da Realidade. Ao mesmo tempo, Pasolini era um sedutor de rapazes, sexualmente ativo e passivo, liberto de todas as amarras morais que inibem sexualmente os intelectuais, frequentador do bas-fond, amigo de subproletários, marginais e prostitutos, circulando livremente e com a mesma desenvoltura entre os luminares da alta cultura italiana, entre os quais se destacava, e os malandrinhos das borgate de Roma, entre os quais era querido. Quando veio “incógnito” ao Brasil acompanhado de sua amiga Maria Callas, evitou a imprensa e foi “caçar” nas favelas do Rio. E quando filmava no Terceiro Mundo, ia buscar seus parceiros no meio popular, arriscando a vida. Gostava do sexo natural, feito na praia, na relva, nos arrabaldes. De dia, trabalhava exaustivamente em seus livros e filmes, ia almoçar ou jantar com seus amigos, todos eles grandes nomes da cultura italiana. De noite, seguia para a “caça”, para fazer sexo com jovens rapazes do submundo, alguns dos quais acabavam se tornando também seus amigos e atores de seus filmes. Para a sociedade burguesa, ele era a encarnação de Dorian Gray e, para os fascistas, a encarnação de Dr. Jekyll e Mr. Hyde. Foi por isso também que Pasolini foi expulso do Partido Comunista Italiano, formado, como toda a esquerda, por intelectuais burgueses, em sua maioria sexualmente recalcados, desde a infância. Pasolini foi iniciado sexualmente por dois camponeses menores de idade, que o sodomizaram com o seu consentimento, pois há muito os desejava. Veio daí seu gosto pelo sexo selvagem, natural, e sua preferência pelos adolescentes do povo, de modos rudes e membros avantajados. Numa festa em Ramuscello ele se entregou a uma orgia com adolescentes do campo, menores de idade. No dia seguinte, os jovens passaram a contar vantagens, revelando o que fizeram com ele. Um policial que passava de bicicleta ouviu os jovens a se gabarem, comentando a noitada. Pasolini foi então detido e processado. O escândalo levou à perda de sua licença de professor, ele não pode mais lecionar no Estado, foi praticamente expulso de casa pelo pai, um militar fascista, e teve que fugir para Roma, levando a mãe, que ele adorava, passando a morar numa borgata, sobrevivendo de aulas particulares. E de modo ainda mais humilhante para ele, teve cancelada sua carteirinha do Partido Comunista Italiano, onde militava cheio daquelas esperanças revolucionárias que os burgueses todos, seja à direita ou à esquerda, detestavam. Nesse sentido, não apenas a Itália, mas todo o mundo burguês era um lugar horrível para Pasolini.

Pasolini tinha um inquietante pressentimento de genocídio cultural? Ele compartilharia com Giorgia Agamben a mesma desconsolada visão da impossibilidade humana?

Luiz Nazario: Para Pasolini, que amava concreta e fisicamente o povo, e não abstrata e teoricamante como a esquerda burguesa o ama, a percepção de que esse povo se aburguesava com o consumismo, tornando-se tão detestável quanto a própria burguesia, foi um golpe tremendo. Foi esse aburguesamento do povo ocorrido nos anos de 1960 na Itália do “milagre econômico”, pela massificação da TV e da publicidade, que Pasolini chamou de “genocídio cultural” ou de “homologação”. O filósofo italiano Giorgio Agamben foi amigo de Pasolini na juventude: tinha 22 anos de idade quando o cineasta o convidou para encarnar o apóstolo Felipe em Il Vangelo secondo Matteo (O evangelho segundo São Mateus, 1964). Para Agamben, o homem é o único animal interessado na própria imagem, um “animal que vai ao cinema”. É possível que ele tenha herdado de Pasolini seu pessimismo intelectual, mas, como filósofo burguês, seu desespero não é tão físico e concreto – tão apocalíptico – quanto o de Pasolini.

A obra completa de Pasolini (nove volumes que abrigam poesia, romance, ensaio, narrativa, jornalismo, crítica literária, teatro e cinema) permanece atual?

Luiz Nazario: Sem dúvida, como são e sempre serão atuais as obras de Dante, Molière, Cervantes, Goethe, Shakespeare, Dostoievski, Kafka, Canetti, Ayn Rand, Borges, etc. Pasolini é um dos monumentos não apenas da cultura italiana, como da cultura humana. Como qualquer grande autor, nem tudo o que escreveu é grande. Mas sua obra é, como a de todos os grandes, grande em alguns momentos e em seu conjunto. É como toda bela cidade. Quando pensamos em Paris, em Praga, em Roma, em Veneza, em Milão, em Londres, etc. não pensamos em seus arredores horríveis, mas no que há de maravilhoso nessas cidades, nas belezas que elas são efetivamente, apesar de tudo, graças às belezas que possuem e que irradiam suas qualidades para o todo. Pasolini é um dos grandes autores do mundo, e sempre valerá a pena visitar e revisitar suas obras.

Alberto Moravia chamava Pasolini de “poeta civil”, o que isso significa?

Luiz Nazario: O poeta civil é aquele que não compõe apenas poemas sobre diversos temas que podem ou não falar à alma de alguns ou de muitos, mas aquele que se torna a voz da nação em alguns momentos, falando à alma de todo o povo, uma voz poética cuja mensagem transcende a poesia sem deixar de ser poética, emocionando a nação inteira. No Brasil, Carlos Drummond de Andrade, com Rosa do povo, ou Ferreira Gullar, com Poema sujo, são dois exemplos. O poeta civil é o poeta que se engaja pela liberdade no mais alto grau da literatura.

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2013 in review

The WordPress.com stats helper monkeys prepared a 2013 annual report for this blog.

Here’s an excerpt:

A San Francisco cable car holds 60 people. This blog was viewed about 3,200 times in 2013. If it were a cable car, it would take about 53 trips to carry that many people.

Click here to see the complete report.

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PASOLINI, NO DIA DOS MORTOS

Pier Paolo Pasolini

Pier Paolo Pasolini

Impossível esquecer o dia da morte de Pier Paolo Pasolini: 2 de novembro de 1975. Ele foi assassinado no Dia dos Mortos. Uma homenagem a Pasolini poderia resumir-se à citação de uma única frase do autor, que faz mais sentido que mil artigos das mídias de consumo, de direita e de esquerda: “Não acredito que tenhamos mais qualquer forma de sociedade na qual os homens sejam livres. Não se deve esperar por isso. Não se deve ter esperança de nada. Esperança é algo inventado pelos políticos para manter o eleitorado feliz”.

O documentário holandês Wie de Waarheid Zegt Moet Dood / Whoever Says the Truth Shall Die (1981), de Philo Bregstein, registrou a vida e a morte desse escritor e cineasta livre como poucos homens o foram, com algumas imagens chocantes de seu corpo mutilado, como se esse devesse ser o preço a pagar pela liberdade no conglomerado, onde a industrialização total gera novas classes médias consumistas, violentas, anarquistas, totalmente desprovidas de cultura, como no país de Lula-Dilma, campeão mundial de assassinatos de homossexuais e tão vibrante de vandalismos. O filme nunca foi lançado no Brasil.

Os escritos de Pasolini, divididos em poemas, ensaios, crônicas, romances e peças, assim como os filmes de Pasolini, que também podem ser divididos em filmes-poemas, como La Rabbia; filmes-ensaios como La forma della città; filmes-crônicas como Appunti per un’Orestiade Africana; filmes-romances, como Teorema; e filmes-peças como Pocilga, nunca perderam o frescor de sua novidade, permanecendo atuais, gerando a cada ano novas teses e livros, novas biografias e documentários.

Apenas neste ano, Pasolini foi revisto numa dezena de obras, entre as quais: L’Apocalisse secondo Pier Paolo Pasolini (2013), de  P. Pedote; Pasolini profeta (2013), de Felicia Buonomo; Dimenticare Pasolini. Intellettuali e impegno nell’Italia contemporanea (2013), de Pierpaolo Antonello; L’ultima partita di Pasolini. Trapani, 4 maggio 1975 (2013), de Salvatore Mugno; Fratello selvaggio: Pier Paolo Pasolini tra gioventù e nuova gioventù (2013), de G. M. Annovi; La lingua scritta della realtà. Studi sull’estetica di Pier Paolo Pasolini (2013), de Luca D’Ascia… Impossível ler tudo.

Enrico Menduni apresentou no último Festival de Veneza um novo documentário sobre Pasolini: Profezia: L’Africa di Pasolini (Profecia: a África de Pasolini, Itália / Marrocos, 2013), de Gianni Borgna. O filme aborda a busca de Pasolini de uma África que prolongava seu sonho perdido de uma vida camponesa revolucionária em sua Friuli natal e nas borgate romanas. Seu amor por uma cultura ainda próxima do mito, registrado em La Rabbia (1963), Edipo Re (1967), Appunti per un’Orestiade Africana (1969), surge como o fundo notálgico de seu desencanto com o mundo civilizado, documentado também em reportagens da época encontradas nos arquivos do Instituto Luce e da Rai, incluindo um diálogo entre Pasolini e Jean-Paul Sartre, em Paris, sobre Il Vangelo secondo Matteo (1964).

Franco Citti e Enrico Berlinguer nos funerais de Pier Paolo Pasolini.

Franco Citti e Enrico Berlinguer nos funerais de Pier Paolo Pasolini.

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